quarta-feira, 8 de agosto de 2007

Fragmentos disso que chamamos de "minha vida".

Há alguns anos. Deus — ou isso que chamamos assim, tão descuidadamente, de Deus —, enviou-me certo presente ambíguo: uma possibilidade de amor. Ou disso que chamamos, também com descuido e alguma pressa, de amor. E você sabe a que me refiro.

Antes que pudesse me assustar e, depois do susto, hesitar entre ir ou não ir, querer ou não querer — eu já estava lá dentro. E estar dentro daquilo era bom. Não me entenda mal — não aconteceu qualquer intimidade dessas que você certamente imagina. Na verdade, não aconteceu quase nada. Dois ou três almoços, uns silêncios. Fragmentos disso que chamamos, com aquele mesmo descuido, de "minha vida". Outros fragmentos, daquela "outra vida". De repente cruzadas ali, por puro mistério, sobre as toalhas brancas e os copos de vinho ou água, entre casquinhas de pão e cinzeiros cheios que os garçons rapidamente esvaziavam para que nos sentíssemos limpos. E nos sentíamos.

Por trás do que acontecia, eu redescobria magias sem susto algum. E de repente me sentia protegido, você sabe como: a vida toda, esses pedacinhos desconexos, se armavam de outro jeito, fazendo sentido. Nada de mal me aconteceria, tinha certeza, enquanto estivesse dentro do campo magnético daquela outra pessoa. Os olhos da outra pessoa me olhavam e me reconheciam como outra pessoa, e suavemente faziam perguntas, investigavam terrenos: ah você não come açúcar, ah você não bebe uísque, ah você é do signo de Libra. Traçando esboços, os dois. Tateando traços difusos, vagas promessas.

Nunca mais sair do centro daquele espaço para as duras ruas anônimas. Nunca mais sair daquele colo quente que é ter uma face para outra pessoa que também tem uma face para você, no meio da tralha desimportante e sem rosto de cada dia atravancando o coração. Mas no quarto, quinto dia, um trecho obsessivo do conto de Clarice Lispector "Tentação" na cabeça estonteada de encanto: "Mas ambos estavam comprometidos.

Era isso — aquela outra vida, inesperadamente misturada à minha, olhando a minha opaca vida com os mesmos olhos atentos com que eu a olhava: uma pequena epifania. Em seguida vieram o tempo, a distância, a poeira soprando. Mas eu trouxe de lá a memória de qualquer coisa macia que tem me alimentado nestes dias seguintes de ausência e fome. Sobretudo à noite, aos domingos. Recuperei um jeito de fumar olhando para trás das janelas, vendo o que ninguém veria.

Atrás das janelas, retomo esse momento de mel e sangue que Deus colocou tão rápido, e com tanta delicadeza, frente aos meus olhos há tanto tempo incapazes de ver: uma possibilidade de amor. Curvo a cabeça, agradecido. E se estendo a mão, no meio da poeira de dentro de mim, posso tocar também em outra coisa. Essa pequena epifania.

* Caio Fernando Abreu

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já vai fazer três anos que eu conheci o significado de uma Pequena Epifania.

8 comentários:

Pingo de Leite disse...

Amei o fragmento que selecionaste! Peço-te que deixe um comentário em meu blog para que eu possa encontrar seu blog mais facilmente e passar aqui de vez em quando...

De disse...

Achei agora o seu blog todo dedicado ao Caio F.- como ele gostava de ser chamado, por causa da Christiane F.- eu também tenho vários blogs onde posto muita coisa do Caio, que adoro, além de uma página do Multiply onde também postei textos, fragmentos de textos, fotos, colagens que eu fiz, biografia do Caio, se você quiser dar uma olhada eu vou ficar muito feliz.
Abraços,
Denise Soares Miranda

Andreza F. disse...

AmO seu Blog acompanho sempre..Parabens!!

momento suspenso disse...

esse fez parte de um momento lindo...meu..

Cacá Hewson Smith disse...

Adoro a escrita do Caio F.
Conheci sua obra já no final da minha adolescência e então vi que perdi um bom tempo por não te-lo conhecido antes. Mas td bem, faz parte, td na vida tem seu tempo. Hoje ou daqui 30 anos, a obra do Caio será lembrada, pq é naturalmente inesquecivel.

Don Duran disse...

Adorei seu blog, e essa passagem me remeteu muito um momento meu, um momento Libriano rsrs.
Pretendo passar bastante por aki.

Kriscallado disse...

Adorei!

Anna Kallyne disse...
Este comentário foi removido pelo autor.